O ti Francisco chegara cedo à barbearia como sempre fizera desde há trinta anos. Devagar, limpa as bancadas que já tinham sido limpas na véspera, troca as tesouras e pentes, lava as mãos, muda o lugar dos champoos e das lacas nos armários, dobra e desdobra as toalhas, lava as mãos outra vez.
Não quer que as pessoas que passam e olhem para dentro da barbearia o vejam inactivo, desesperado, sem clientes e já sem esperança que venham dias melhores.
Por isso não pára e anda de um lado para o outro a fingir que arruma coisas, vai mudando de lugar aos frascos de perfumes, secadores, os pinceis da barba…
Há trinta anos que é dono daquela barbearia e nunca tinha tido uma semana assim, nem um único cliente! Nenhum rapaz a quem rapar o cabelo, nenhum velho que queira fazer a barba. Nenhum careca de óculos à procura de uma boa conversa sobre futebol, nada!
Passadas duas horas, não sabe o que fazer, já desarrumou e arrumou tudo, limpou todos os espelhos, esfregou todas as toneiras e varreu o chão pela décima vez e agora sente-se cansado. Doem-lhe as pernas, as costas, a cabeça…
Parado, de barbearia vazia, o ti Francisco olha as pessoas lá fora que se movimentam apressadas sem deitar um único olhar à barbearia.
Senta-se na primeira cadeira virada para o espelho e fecha os olhos. Lá fora, há demasiados barulhos de rua; automóveis, obras, pessoas… e pensa que é um homem só, que dormita no seu próprio fracasso. Culpa sua? Talvez… deveria ter mudado de ramo quando o fazer barbas começaram a rarear e muitos dos seus clientes começaram a preferir os novos salões de cabeleireiro, com as bonitas manicures que se tornaram um chamariz…
Nunca fora um homem de grandes ambições, sempre sustentara a casa e educara três filhos, todos eles emigrados e com família no estrangeiro, apenas com o seu trabalho na barbearia. A mulher falecera há cinco anos e os filhos raramente davam noticias, agora era um homem só, com a sua barbearia vazia e a suportar a tal crise.
Quando abriu os olhos vê um gato à entrada da porta. Um bicho malhado de olhos esguios, que o fita entre curioso e receoso. O ti Francisco levanta-se, agradado daquela súbita companhia.
- “Entra, diz com voz doce – anda, não tenhas medo”.
Mas o gato, não sai da entrada, fitando-o com um olhar indefinido.
- ‘Vem, aqui está mais quentinho”
O gato não se mexe e o barbeiro dá meia volta e dirige-se à porta do fundo. Regressa depois com um pacote de bolachas Maria e um prato de água.
-“Deves ter sede? Olha, estas bolachas são boas, são as que comprava para os meus netos, mas agora já não os vejos há um bom tempo, tinha aqui este pacotinho de reserva, nunca se sabe…”
Abre o pacote e parte duas bolachas aos bocadinhos e coloca-os no chão, junto ao prato da água.
-“Que tal? Isto é bom, hã? Não faças cerimónia…”
O gato olha-o como se tivesse percebido e avança para o prato da água e bebe um pouco.
O barbeiro, satisfeito por ter uma companhia, sorriu, colocou-se atrás da cadeira e começou a conversar com o bicho:
-“Esta vida traz-nos sempre algumas surpresas, não é verdade? Hoje, quando aqui cheguei, a última coisa que me passaria pela cabeça, era “atender” um gato perdido como tu e, no entanto, aqui estamos, tu e eu!”
O gato que se tinha sentado junto ao prato da água, olha-o de novo e dá uma trinca no pedaço de bolacha.
- “Imagina se alguma vez pensei não ter um único cliente uma semana inteirinha. Que se passa com as pessoas? A crise não pode ser a culpada de tudo! Há falta de vontade sabes? As pessoas agora têm outros interesses e as tradições vão morrendo com estas modernices. Eles vão ao cabeleireiro, é mais chic, percebes? E agora? O que vai ser de mim e da minha barbearia?”
O gato que olhava distraído para a rua, mirou mais uma vez o ti Francisco, depois rodou a cabeça como se escutasse algo de interesse lá fora. Levantou-se e saiu! O barbeiro viu-o afastar-se e, finalmente, sai também. Fecha a porta, roda a chave e vira as costas à barbearia.
terça-feira, 9 de outubro de 2012
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