De vez em quando, gosto de ir comer a um restaurante chinês, ali para os
lados do Mercado Vermelho, hábito que me ficou quando vivi por aqueles lados e
que na altura, fui arrastada por uma amiga macaense. Fiquei cliente!
O dono, é o senhor Shuang, que anda sempre por ali a ver se está tudo em ordem,
fala um bocadinho de português, o suficiente para nos conseguirmos entender em
simples conversas.
Numa das vezes em que lá fui almoçar, ele sentou-se na minha mesa, então
perguntei-lhe com curiosidade, se se lembrava dos guardas vermelhos, na altura
de “Revolução Cultural”. Acenou afirmativamente com um ar grave e
confidenciou-me que tinha fugido de Xangai, mais a esposa Xiaoli, em 1970.
Tinham acabado de se casar, ele com 22 anos e ela com 19, numa época
conturbada, a Revolução Cultural, que logo se transformou numa luta pelo poder.
Empreendida pelo grupo maoísta, sustentada pelo Exército Popular de
Libertação, precisamente na altura em que Mao, entrou em choque com Lin Piao,
seu sucessor e chefe do Exército Popular.
O movimento foi-se multiplicando em organizações revolucionárias, que se
inspiravam no livro “Pensamentos de Mao Tsé-Tung”, conhecido como “Livro Vermelho”,
onde se firmavam as ideias de reeducação socialista, críticas ao burocratismo,
fidelidade a Mao e alerta contra o inimigo.
E todos eram inimigos, ninguém estava livre de um dos fanáticos jovens se
lembrarem de inventar mentiras, para “mostrar serviço” e assim enviar milhares
de inocentes para os campos de reeducação. Decidiram fugir.
Viajou com a esposa mais de um mês, sempre escondidos, até chegarem a
Macau, para junto de um tio, que lhes deu guarida.
Dormiram muito tempo numa esteira à entrada da porta de casa desse tio. Ele e a esposa passaram a trabalhar na mercearia, que lhe foi deixada dez anos depois, após o
falecimento do parente, pois ele não tinha mais ninguém.
Com um sorriso matreiro, o senhor Shuang confessa que foi uma sorte, porque o casal tomou a rédea ao negócio,
que ainda durou uns dois ou três anitos no mesmo ramo.
O tio deixara-lhes também algumas
poupanças e, juntamente com um dinheirinho que tinham amealhado, na esperança de
voltarem um dia à terra, que os viu nascer, decidiram comprar o espaço. Com o
nascimento da filha, foram ficando…
A esposa cozinhava bem e por isso, resolveram apostar na restauração. Após algumas obras, abriram o restaurante, com espaço que nessa altura,
dava para uns quarenta lugares. Lentamente, foram angariando clientela.
Passados cinco anos, o senhor Shuang comprou a lojinha ao lado, que vendia artigos
funerários e ampliou o restaurante para oitenta lugares. Agora sim, o
estabelecimento passou a ser considerado “médio”, foi ganhando a confiança de clientela
mais selectiva, que eram na sua maioria homens de negócios, funcionários
públicos e bastantes estrangeiros, atraídos pela fama dos seus preços razoáveis
e cozinha de qualidade.
Os melhores cozinheiros, têm sido ao longo dos anos, disputados pelo senhor
Shuang, que lhes paga razoáveis salários, acima da média dos outros
restaurantes.
-“Quando abri o meu restaurante em 1985, nesta rua, havia apena 5
restaurantes, agora são 97, embora tenha uma enorme concorrência, não me
queixo, porque ganho muito bem a minha vida e boa clientela nunca me faltou. Mas
com este problema dos preços das rendas sempre a aumentar, agradeço aos deuses
a inspiração que tive em ter comprado o meu espaço. Tenho visto muitos vizinhos fecharem
as suas portas e no seu lugar, obras, mais obras, um dia são uma coisa, noutro
dia outra, totalmente diferente da primeira".
A chegada da filha do Senhor Shuang, interrompeu-nos a conversa. Baixinha e
roliça como a mãe, fez-me uma vénia, depois do pai nos apresentar.
Ela tinha estudado inglês numa Universidade de Xangai e ainda trabalhara
três anos nos Estados Unidos, onde casara com um americano. Mas o casamento e a
vida por lá não tinha resultado, divorciou-se e de regresso a Macau, passou a
ser o braço direito do pai, e futura herdeira do negócio.
Sobre o futuro, o senhor Shuang disse não ter nenhuma inquietação, não
haveria regresso ao passado e Xangai, só para passear…
Sem comentários:
Enviar um comentário