segunda-feira, 19 de abril de 2010

Três filhas da China

Recebi alguns emails de pessoas amigas que me pedem para publicar mais curiosidades sobre a China, mas, para entender um pouco mais este país, é essencial conhecer também um pouco da sua milenar cultura.
Uma obra fundamental que recomendo vivamente é o livro “Cisnes Selvagens" - Três Filhas da China, da autoria de Jung Chang, que faz uma grande reportagem sobre a China, tendo como fio condutor a trajectória da sua própria família.
Quando a avó nasceu, em 1909, a China vivia sob o império da dinastia Machu, logo derrubada para dar lugar à República.
Quando nasce o pai, em 1921, o Kuomintang preparava-se para tomar o poder, o que ocorre em 1927, sob o comando de Chang Kai-chek, que instaura então um governo burguês e esmaga com sangue a primeira tentativa da revolução socialista na China.
O livro foi escrito em 1990 e lançado em 2000 e conta a história de três gerações de mulheres chinesas: Yu-fang, avó de Jung Chang (nascida em 1909), De-hong, mãe de Jung Chang (nascida em 1931) e da própria Jung Chang (nascida em 1952).
O livro é de uma grande riqueza descritiva, que nos transporta ao dia-a-dia do povo chinês, dias dificeis de trabalho duro braçal, mas apesar de tudo, falam dos seus sonhos, das alegrias e das tristezas.
Descreve, sobretudo, a dura vida de opressão das mulheres, vítimas de costumes ancestrais, que só começaram a ser lentamente transformados com a revolução socialista de 1949. Mas a burocracia e depois a restauração do capitalismo na China, fizeram com que o processo de emancipação das mulheres chinesas, iniciado com a revolução, fosse depois interrompido e muitas dessas conquistas foram perdidas.

Quando a mãe nasce em 1931, o Japão invade a Manchúria e em 1937 ataca a China interior. O Partido Comunista, orientado por Stalin, alia-se ao Kuomintang. Em 1946, explode a guerra civil entre os comunistas e o exército de Chang Kai-chek. O pai de Jung Chang integra-se numa unidade de guerrilheiros comunistas da região de Chaoyang. A mãe torna-se líder estudantil e junta-se aos comunistas na clandestinidade.

Em 1949, ao mesmo tempo em que é proclamada a República Popular da China, com a vitória do exército de Mao Tsé-tung, os pais casam-se. Tem início então a reforma agrária e, em 1950, a China entra na Guerra da Coreia. Em 1951,a mãe é líder da Liga da Juventude de Yibin e, no ano seguinte, nasce ela, Jung Chang. A mãe e o pai eram nessa altura chefes do Departamento de Assuntos Públicos e, como milhões de chineses daquela época, foram vítimas de perseguições pela burocracia do Partido Comunista. Todo aquele que fazia qualquer tipo de crítica ao regime era considerado contra-revolucionário. O pai perde o emprego, a mãe é presa, e libertada mais tarde, em 1956.Em 1966, começa a Revolução Cultural e o pai de Jung Chang é preso. A mãe vai a Pequim apelar para a sua libertação e consegue que o marido saia em liberdade. Jung Chang junta-se aos Guardas Vermelhos, mas, quando os seus pais são novamente presos e torturados, em 1967, ela rompe com os Guardas Vermelhos. Novamente acusados de contra-revolucionários, os pais são mandados para campos de trabalhos forçados e Jung Chang é exilada em Ningnan.
Trabalha como camponesa em Deyang, e, de volta a Chengdu, a sua cidade natal, torna-se trabalhadora metalúrgica e electricista.

Em 1972, Nixon visita a China e tornando-se assim um símbolo da abertura chinesa ao Ocidente. O pai de Jung Chang sai da prisão, muito doente, e morre dois anos depois. Em 1977, Jung Chang entra na universidade e no ano seguinte ganha uma bolsa de estudos e vai estudar para Inglaterra, onde vive até hoje. Nessa época, Deng Xiaoping, o Gorbachev chinês, já estava de volta ao poder e, com ele, a política de restauração do capitalismo no seu país.
Foram anos extremos para a China. Depois de ter vivido o inferno, vive a alegria de receber os comunistas e a revolução socialista, e novamente vem a amargura e o sofrimento impostos pela política stalinista, com perseguições sobre todos os suspeitos, era usada a cultura da desmoralização sobre um povo cioso de seu carácter e das suas crenças, os requintes de crueldade que alimentaram as grandes revoltas contra a ditadura e finalmente o processo de restauração do capitalismo.
Pés enfaixados

Tudo isto foi vivido pela família de Jung Chang com muita intensidade. Ela descreve cada facto, sempre relacionado ao contexto político, mas as mulheres são as principais personagens, onde não escapa uma referência aos "pés de lótus".
Com apenas quinze anos, a avó tornou-se concubina de um caudilho militar. Corria então o ano de 1924 e a China estava mergulhada no caos. Em grande parte do território, incluindo a Manchúria, onde vivia a sua avó, o poder era exercido por chefes militares, conhecidos como “os senhores da guerra”.
De acordo com o tradícional costume, o seu bisavô casou cedo, aos catorze anos, com uma mulher seis anos mais velha. Considerava-se que, uma das obrigações da esposa era ajudar a criar o marido. Como milhões de mulheres chinesas na época, entre elas, a sua bisavó, nem sequer teve um nome (só os homens recebiam nomes), e como era a segunda filha, tratavam-na simplesmente por “Rapariga número dois” (Er-ya-tou).

Em 1909, ela tem uma filha, que já nasceu em melhores condições que a mãe, pois deram-lhe um nome: Yu-fang. Mas nem por isso escapou a um dos costumes mais cruéis contra as mulheres: os pés enfaixados, que em chinês tem o nome de “lírios dourados com oito centímetros” (san-tsun-gin-lian).

Jung Chang: conta: - “Tinha a minha avó dois anos quando lhe enfaixaram os pés. A mãe, que também tinha os pés enfaixados, começou por enrolar-lhe à volta dos pés uma tira de pano com cerca de seis metros de comprimento, dobrando todos os dedos, com excepção do grande, para dentro e para debaixo da planta do pé. Depois colocou uma grande pedra em cima, para esmagar o arco. A minha avó gritou de dor e suplicou-lhe que parasse, e a mãe teve de meter-lhe um pano na boca, para amordaçá-la. A infeliz desmaiou diversas vezes, devido à dor. O processo demorava anos. Mesmo depois dos ossos terem sido partidos, os pés tinham de continuar enfaixados, dia e noite, em tiras de pano, pois, no momento em que fossem libertados, tentariam recuperar a sua forma. Durante anos, a minha avó viveu cheia de dores terríveis e constantes”.
Foi o que aconteceu com a mãe e milhares de mulheres chinesas que aderiram à revolução e lutaram até o fim pelos seus sonhos. Daí o nome do livro, “Cisnes Selvagens”.

2 comentários:

Anónimo disse...

Embora seja um grande país, nos vários sentidos da palavra, a China continua ter imensas contradições, ainda, nos dias de hoje, sendo um deles a enorme diferença entre a vida dos abastados e a dos remediados e pobres. É verdade que as conquistas alcançadas, nos mais diferentes sectores da sociedade, têm contribuído para uma melhoria substancial da situação da sua população, mas a corrupção, apesar dos esforços desenvolvidos pelo Governo Central, continua a grassar e com isso grandes injustiças mantêm-se em muitas províncias do país. Esperemos que, em breve, melhores dias cheguem não só para os chineses como para todos os que aqui (China) vivem.

Anónimo disse...

O que mais me impressiona nestas mulheres, é o facto, e, embora hoje está praticamente extinto, das mulheres mais velhas ainda hoje sofrem horrores em consequência desse costume.
Isso tudo era para arranjar marido, os homens achavam muito sexy essas deformidades, inclusive quando os pés necrosavam.