A minha mãe casou nos anos quarenta. Pertencia a uma geração de opiniões censuradas a lápis azul e as mulheres com poucos ou nenhuns direitos, mas de homens cheios deles. Era um tempo em que o casamento era para toda a vida, o divórcio proibido, as uniões de facto eram pecado e filhos sem casar, uma desonra.
Era eu adolescente, e num dos serões lá de casa, casais amigos dos meus pais, reuniam-se e contavam-se histórias. Poucas me ficaram na memória, mas há uma, que eu jamais esqueci e que muito me impressionou: a história de uma amiga da minha mãe, a Manuela, que tinha casado em 1949. Os meus pais tinham sido convidados do seu casamento e assistido a uma história de vida, que teve um desfecho incrível e pouco comum para a época.
O CASAMENTO DE MANUELA:
Manuela ia casar! Havia uma roda-viva de última hora! A festa prometia ser um acontecimento bem sucedido, para isso contribuíram os esforços de todos, pai, irmãos, tios e afins, porque como filha única, os pais faziam questão de uma festa memorável.
Manuela estava feliz e nervosa, como é de costume as noivas estarem.
Levantara-se cedo, tinha ido ao cabeleireiro antes do pequeno-almoço e quando saíra eram já horas do almoço, que tomou com a avó, num restaurantezinho perto da praça onde ela vivia.
Com as mãos trémulas, a avó, colocou-lhe na lapela do casaco uma pequena jóia que tinha por sua vez recebido da sua mãe, antes de morrer. E assim se faz a passagem de testemunhos, numa continuidade de gestos e intenções.
Tinha sido prepositadamente que se tinha encontrado com aquela avó, que adorava, porque lhe transmitia serenidade e paz. A avó tinha-lhe dito que não ia à festa, porque se sentia doente e fraca, mas fez-lhe bem este encontro antes da cerimónia, que a deixou mais serena para este acontecimento tão importante e definitivo da sua vida.
Quando regressou a casa já as tendas tinham sido erguidas, as mesas postas, o bar pronto a funcionar, os empregados movimentavam-se atarefados com cadeiras, arranjos de flores e velas.
Visto que nenhuma ajuda era necessária retirou-se para o seu quarto, onde se preparou para mergulhar num banho quente e relaxante. Já estava pronta antes mesmo de chegarem os primeiros convidados, que a sua família ia recebendo juntamente com a família do noivo.
Colocou no decote generoso o alfinete que a avó lhe dera, para a sentir presente. A mãe, bela como sempre, inigualável, rodeada dos seus colaboradores e alguns convidados, esperava-a para seguirem para a capela.
Este casamento era do agrado das duas famílias. Foi um casamento faustoso, na quinta dos pais do noivo, ali para os lados de Santarém, celebrado na capela que ainda pertencia à familia, pelo pároco daquela pequena aldeia, seria de esperar que a conclusão desse casamento seria: “E Viveram Felizes para Sempre”, mas infelizmente não foi assim...
Quando, passados dois meses, Manuela apareceu em casa do pai a sangrar do nariz, consequência de uma “embirração” com a porta do quarto - desculpu-se ela - nada fazia prever que essa “embirração” começasse a ser sistemática. A minha mãe, era a única amiga desses desabafos.
Só quando teve que ir para o hospital, com o maxilar partido, se tornou claro que o marido para além de lhe infringir maus tratos, a mantinha dominada psicologicamente, pois os meus pais aconselhavam-na a separar-se, mas os tempos eram outros e a vergonha dessa separação tão imatura, fazia-a regressar sempre a casa do marido, que já era notório o seu temperamento violento, quando certa vez entrara em confronto com ela por causa duma pequena viagem que Manuela queria fazer com a avó a casa de uns parentes que viviam no norte.
Daí a partir para a agressão física, foi um pequeno passo. Manuela evitava discussões, que a propósito de qualquer frase, degenerava para um descontrolo capaz de gerar uma cena de violência imparável, com insultos e agressões de toda a ordem.
Ela ia suportando tudo, em silêncio, por vergonha, sempre na esperança que as coisas melhorassem, depois de ele lhe pedir perdão e prometer a chorar, que tudo ia mudar...
História já conhecida de todos nós e sempre com o mesmo fim, isto é, sem fim à vista. Uma noite, Manuela ouviu-o chegar, batendo com as portas; com o coração acelerado esperou que ele se deitasse sem a incomodar, como às vezes acontecia. Já dormiam em quartos separados desde que numa noite Manuela teve de ir receber assistência ao hospital com um pulso partido. Ele era esperto, nunca lhe batia na cara para não a desfigurar, para as pessoas não se aperceberem do que realmente se passava naquele casal aparentemente tão amoroso.
Com o coração a bater, Manuela aproximou-se da porta e escutava-o andar de um lado para o outro, tropeçando aqui e acolá, por certo já embriagado. Começou a tremer e a rezar, pedindo a Deus que o afastasse da sua porta, da sua cama, do seu corpo. Mas foi esse corpo que ele violentou nessa noite, violando, mais do que isso, a dignidade da mulher, depositando nele o sémen de que resultaria um ser não desejado, que Manuela, ao princípio, odiou mais do que se possa imaginar, mas que durou apenas o tempo do seu desamor. Com o nascimento do filho, seguiu-se uma paz morna e podre, feita de renúncias e despojos, uns tempos sem história em que mal se viam, presumindo Manuela, que outra mulher ocupava na vida do marido, o lugar que ela definitivamente recusava ocupar.
A criança ficava muitas vezes em casa dos avós, quando ela se sentia mais deprimida e fraca, valia-lhe muitas vezes a amizade dos meus pais, que a confortavam conforme sabiam e podiam.
Mas um dia, naquela madrugada, ainda escura, acordou com barulhos do outro lado da casa com um bater da porta, coisas a cair e um grito abafado. Ficou em pânico, fazendo-a recuar tempos atrás, no dia em que fora violada e, ficou algum tempo à escuta. Um vulto entrou no seu quarto a cambalear, estendeu um braço na direcção dela e caiu desamparado a meio do caminho.
Manuela não se atrevia a aproximar-se mais do que o suficiente, apenas para verificar se ele respirava. Ouvia-se apenas um ligeiro ruído, um estertor, arquejando ao mesmo tempo que tentava dizer-lhe qualquer coisa. Ela nem se atrevia a acender uma luz, mas na penunbra começou a ver uma quantidade de sangue, que lhe saía da manga da camisa e alastrava pelo chão, onde tinha caído de bruços.
Recuou, sentou-se numa cadeira e ficou a olhá-lo, estupidificada, sem força nem vontade de o socorrer ou pedir ajuda. Aos poucos ele deixou de se mexer e já o dia rompia quando Manuela, calma e friamente, arranjou-se, meteu uma pequena muda de roupa num saco e foi hospedar-se num modesto hotel, perto da praia.
Precisava pensar, para não ser acusada do crime de falta de assistência à vítima. A meio da manhã, encheu-se de coragem e ligou para casa, para perguntar à empregada se estava tudo bem... quase desmaiou, quando ouviu a voz do marido, forte e saudável, que lhe perguntava:
“-ONDE É QUE ANDAS?”
Tremendo, deixou cair o telefone e ficou a olhar para ele, como se este mordesse…
-“ONDE ESTÁS?” - Voltou a ouvir voz odiada, tão alto e tão irritado, que se podia ouvir distintamente.
-“Estou... estou na rua, vim fazer umas compras. E tu? Estás bem?”
-“Não, não estou bem, com um morto em casa, como posso? E a Lina, foi para o hospital com ferimentos graves!”
Não entendia nada, apenas conseguiu balbuciar um “vou já!”
Quando chegou a casa, acabou por entender que no escuro, e no seu desejo que fosse ELE, confundira o vulto, como se fosse o do marido, quando afinal se tratava de um assaltante perigoso, que depois de ter atacado a empregada e já muito ferido com as facadas que esta lhe desfechara, se dirigiu pelo corredor fora, à procura de uma saída e de socorro, caindo ali à sua frente, ferido de morte.
Incrível como tudo parecia ser de uma outra forma. A verdade contada pelo seu odioso marido, caiu à sua frente, como se fosse um muro de esperança que desabasse.
Lina, a brava Lina, ainda ficou uma semana no hospital, mas recuperou fisicamente, o mesmo não aconteceu psicologicamente, por isso despediu-se.
Quando, três meses e meio depois Manuela abateu a tiro o homem que era suposto ser um assaltante, mas que afinal se veio a confirmar ser o seu marido, que “no escuro ela confundiu”, tinha arranjado o perfeito álibi, até porque ela estava demasiado espancada, para que a policia não acreditasse...
sexta-feira, 24 de junho de 2011
Um casamento à moda antiga
Etiquetas:
casamento antigo,
Crónica,
histórias de vida,
violência doméstica
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