segunda-feira, 2 de maio de 2011

O Menino e o Executivo

Mesmo que não possas acabar com o sofrimento dos outros, só o facto de te importares, irás diminuí-lo.

Entrei apressado e com muita fome no restaurante. Escolhi uma mesa bastante afastada do movimento, porque queria aproveitar os poucos minutos que dispunha naquele dia, para comer e acertar alguns problemas de programação num sistema que estava a desenvolver, além de planear a minha viagem de férias, coisa que há tempos que não sei o que são. Pedi uns filetes com arroz, uma salada e um sumo de laranja, afinal de contas fome é fome, não é?
Abri o meu portátil e apanhei um susto, quando ouvi aquela voz baixinha atrás de mim:
- Senhor, não tem umas moedinhas?
- Não tenho, menino.
- Só uma moedinha para comprar um pão.
- Está bem, eu compro um.
Para variar, a minha caixa de entrada estava cheia de e-mails. E fico distraído a ver poesias, as fotografias engraçadas que um amigo mandou, rindo-me com as piadas malucas que outro amigo me mandou. Ah! Estes sites têm várias dos anos 80, são bem agradáveis e...
- Senhor, peça para colocar margarina e queijo aqui no pão, por favor.
Percebo nessa altura que o menino tinha ficado ali.
- Ok. Vou pedir, mas depois deixas-me trabalhar, estou muito ocupado, está
bem?
Chega a minha refeição e com ela, o meu mal-estar. O empregado pergunta-me se quero que mande o menino embora. O peso na consciência, impedem-me de o dizer. Digo que está tudo bem. Deixe-o ficar. Que traga mais pão e, mais uma refeição decente para ele.

Então sentou-se à minha frente e, devorando a sandes, perguntou curioso:
- Senhor, o que está fazer?
- Estou a ler uns e-mails.
- O que são e-mails?
- São mensagens electrónicas, mandadas por pessoas via Internet (sabia que ele não ia entender nada, mas, a título de livrar-me de questionários desses prossegui):
- É como se fosse uma carta, só que via Internet.
- Senhor você tem Internet?
- Tenho sim, é essencial no mundo de hoje.
- O que é Internet ?
- É um local no computador, onde podemos ver e ouvir muitas coisas, notícias, músicas, conhecer pessoas, ler, escrever, sonhar, trabalhar, aprender. Tem de tudo no mundo virtual.
- E o que é virtual?
Resolvo dar uma explicação simplificada, sabendo com certeza que ele pouco
vai entender e deixar-me-ia almoçar, sem culpas.
- Virtual é um local que imaginamos, algo que não podemos tocar, apanhar, pegar... é lá que criamos um monte de coisas que gostaríamos de fazer. Criamos as nossas fantasias, transformamos o mundo em quase como queríamos que fosse.
- Que bom isso. Gostei!
- Menino, entendeste o significado da palavra virtual?
- Sim, também vivo neste mundo virtual.
- Tens computador?! - Exclamo eu admirado.
- Não, mas o meu mundo também é vivido dessa maneira...virtual. A minha mãe fica todo dia fora, chega muito tarde, quase não a vejo, enquanto eu fico a cuidar do meu irmão pequeno, que vive todo o tempo a chorar com fome e eu dou-lhe água para ele pensar que é sopa; a minha irmã mais velha sai todos os dias também, diz que vai vender o corpo, mas não entendo, porque ela volta sempre com o mesmo corpo, o meu pai está na cadeia há muito tempo, mas imagino sempre a nossa família toda junta em casa, muita comida, muitos brinquedos, em epecial no natal e eu a estudar na escola para vir a ser um médico um dia. Isto é virtual, não é senhor???
Fechei o portátil, mas não fui a tempo de impedir que as lágrimas caíssem sobre o teclado.
Esperei que o menino acabasse de literalmente 'devorar' o prato dele, paguei, e dei-lhe o troco, que me retribuiu com um dos mais belos e sinceros sorrisos que já recebi na vida e com um
-“Brigado senhor, você é muito simpático!'.
Ali, naquele instante, tive a maior prova do virtualismo insensato em que vivemos todos os dias, enquanto a realidade cruel nos rodeia de verdade e fazemos de conta que não percebemos!

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