terça-feira, 6 de setembro de 2011

O que a dor ensina...

Como a fé, a esperança e o amor pela família, podem "matar" um cancro... Começou por se sentir cansada. Subia um lanço de escadas e parecia que tinha corrido a maratona. Não ligou. Andava, talvez, a trabalhar demais; ser professora universitária pode ser esgotante, talvez precisasse de vitaminas, talvez fosse carência de sol, muita chuva e mau tempo nos ossos. Havia de passar. Mas não passou.
Um dia, levava dois sacos do supermercado, um em cada mão, e sentia que os braços se iam arrancar pelos ombros. Não havia de ser nada. – pensou- Tinha feito análises há menos de três meses e estava tudo bem; se calhar, andava a dormir mal; se calhar, era só a idade, que isto já se sabe, o corpinho não é o mesmo aos 18 e aos 43 anos, o tempo faz a sua mossa. Havia de passar.

Mas não passou. Em Março de 1999, Otília Pires de Lima suspirava dezenas de vezes ao dia de cansaço. Estacionar só se fosse de frente. Manobras estavam completamente fora de questão. Às vezes, até lhe apetecia seguir com o carro a direito, afastando-se do seu destino, só para não ter de fazer força com os braços para virar o volante para a esquerda ou para a direita. Estava exaurida.
Por sorte (ou porque o destino decidiu dar uma mãozinha), uma perda de sangue entre duas menstruações, levou-a ao ginecologista para ver se estava tudo bem.
O médico, ao fazer uma ecografia, encontrou um quisto de seis milímetros num ovário e explicou que teria de ser removido. Para isso, era necessário fazer novas análises.
Otília há-de ter protestado um bocadito, que tinha uma colheita de sangue feita há menos de três meses, não era preciso outra, que maçada, mas o médico insistiu e ela lá foi, até porque estava mais aliviada por ter encontrado (julgava ela) a razão do seu cansaço.
Por sorte também (ou porque o destino estava mesmo decidido a dar um empurrão), Otília andava a ouvir uns barulhos tenebrosos no interior da sua cabeça e marcou uma TAC (tomografia axial computorizada).
- “Eu ouvia martelar dentro da minha cabeça. Mas era um martelar tão claro, que durante algum tempo eu achava que havia obras no andar por cima do meu. Até cheguei a insultar, entredentes, o pobre do vizinho por estar a fazer obras à meia-noite. Depois, percebi que as obras estavam dentro da minha cabeça e decidi ir ver o que era aquilo.”
No dia 19 de Maio de 1999, o dia do 21.º aniversário da sua filha, Otília tinha dois afazeres importantes: ir buscar as análises e fazer a TAC.
Quando chegou ao laboratório, não foi a recepcionista quem lhe deu o resultado. Um enfermeiro de ar grave disse-lhe:
-“A senhora tem de ir já para o hospital. Está com 6 de hemoglobina! [O normal são 12 a 16g/dl].»
Otília riu-se: - “Que disparate, vou lá agora para o hospital! Hoje é o aniversário da minha filha, tenho é de me despachar que ainda tenho muito que fazer.”
O enfermeiro persistiu, que era o melhor, que os resultados não estavam bons, que tivesse cuidado, com a saúde não se brinca. E ela sim, sim, pois claro, amanhã ligo ao médico, não se preocupe.
Saiu do laboratório extenuada e foi fazer a TAC, marcada para esse dia. Quando chegou, desmoronou numa cadeira, arfando. A recepcionista perguntou:
_ “Está em jejum?” Otília disse que não e a recepcionista retorquiu:
- “Ah, então não vai poder fazer o exame. Tem de ser em jejum”
Otília soltou uma gargalhada das suas:
-“Olhe, então não vou fazer isto nem hoje, nem nunca. Se eu depois de ter comido me sinto assim, sem forças, imagine que estava em jejum! É que nem conseguia cá chegar!”
A recepcionista ficou pensativa.- “A senhora está tão branca …”
E, alarmada, chamou a médica. Foi então que ela desabafou que tinha ido pouco antes buscar o resultado das análises e que estava com 6g/dl de hemoglobina. A médica arregalou os olhos, fez-lhe a TAC e repetiu as mesmas palavras do enfermeiro do laboratório:
- “A senhora tem de ir para o hospital e é já. Ligue ao seu médico, vai ver que ele lhe diz o mesmo”
Otília mal conseguia marcar os números no telemóvel, mas ligou ao Prof. Ricardo Jorge. Do outro lado da linha, mais do mesmo. –“Mas, ó doutor, eu tenho de ir para casa fazer bacalhau com natas! É o aniversário da minha filha …”
Já não foi! Quando chegou ao Hospital São Francisco Xavier, trataram-na como se fosse uma bomba-relógio prestes a explodir a qualquer instante. Deite-se, não fale, não se mexa. O médico, seríssimo, a decidir:
- “Vai ter de ficar internada!” Otília respondeu: - “Ok. Eu fico cá, mas tenho de ir lanchar com a minha filha!”
A enfermeira que estava ali ia abrir a boca, mas a doente espetou-lhe um dedo no nariz: -“E isto não é negociável!”
Ela não sabe explicar o que sentia, mas era como se tudo aquilo fosse uma ridicularia sem sentido. Tanta histeria à sua volta parecia-lhe uma piada. Achava graça ao modo como todos se agitavam em seu redor, aos gestos nervosos, às vozes de comando dos médicos, à ansiedade dos enfermeiros. Nem lhe passou pela cabeça que aquilo só podia ser muito mau sinal. Estava divertida, em suma, como uma tonta. – “Não me perguntem porquê, mas era como se não fosse nada comigo. Estive o tempo todo a fazer piadas.”

Otília não tinha vaga num quarto e, por isso, puseram-na numa maca no corredor de obstetrícia. Achavam que talvez fosse um problema ginecológico, porque ela mencionou o quisto. Novas análises e a hemoglobina estava ainda mais baixa.
As horas foram passando e, a certa altura, uma auxiliar veio perguntar-lhe se já tinha nascido o seu bebé. Como era o dia de aniversário da filha, que tinha nascido às 21.40, respondeu:
- “Sim, já nasceu. É uma menina com 3,650 kg.” A empregada deu-lhe uma festa, disse parabéns, e perguntou: - “E quando foi?” Otília replicou, então com a mesma naturalidade: - “Foi há 21 anos.”
Outro dos episódios que recorda, divertida, é aquele em que um médico aparece no corredor aos gritos: -“Otília Pires de Lima? Quem é Otília Pires de Lima?”
Ela levantou o braço. O homem, corado e nervoso, levantou-lhe o lençol:
- “A senhora está a sangrar de onde?” Ela encolheu os ombros: - “Eu? Eu não estou a sangrar de lado nenhum!”
O médico estava uma pilha: -“A senhora tem de estar a sangrar de algum lado! Com estes valores, tem de estar a perder sangue por algum lado!” Mas a sua pesquisa não detectou hemorragias, e Otília continuava alegre, como se tudo não passasse de uma brincadeira.
Uma semana depois, foi transferida para o Hospital Garcia de Orta, e nem quando viu a placa a dizer “Hemato-oncologia” se deu conta do que lhe estava a acontecer.
–“Nada me atingia, era tudo como se não fosse comigo, e eu até hoje não sei explicar como e porque é que eu reagi assim.” Só quando uma manhã a médica chega de semblante carregado e lhe diz que se confirmaram as piores expectativas, e pronunciou a palavra, impronunciável, “leucemia”, só aí é que lhe caiu a ficha. O céu desabou sobre a sua cabeça. Queria saber tudo: quais os prognósticos, o que se seguia, o que fazer?
Mas quando a médica lhe perguntou, assim de chofre, se queria mesmo saber tudo, Otília estacou. Não! Era melhor não. E se lhe determinavam um limite? E se lhe diziam: tem um ano de vida? Seis meses? Não. Não queria viver a prazo. Não queria ficar condicionada por uma validade que lhe impunham. Por isso, levantou a mão e declarou:
- “Não. Não quero saber nada.” Quis ficar sozinha. E nesse instante desvairou. Andou pelo quarto como louca. Levou as mãos à cabeça, viu a vida deslizar-lhe à frente dos olhos. E foi nesse filme da existência que parou. Deixou de respirar por segundos. E disse em voz alta para consigo mesmo: - “Não. Eu não posso morrer. Eu não vou morrer disto. Eu não vou fazer isto aos meus pais.”
Otília tinha 43 anos, dois filhos e um pai e uma mãe que já tinham perdido quatro filhas. Ela era a quinta e última descendente e não podia morrer-lhes também.
– “Claro que pensei nos meus filhos, e no quanto os amava, e no quanto não queria deixar de os ver. Mas naquele momento foi nos meus pais que pensei: como é que eu podia morrer também? Como é que eu lhes podia fazer uma coisa dessas? E então soltou-se um grito dentro de mim: Não! Eu não ia morrer, era o que faltava! Eu ia lutar com todas as minhas forças. E ia ganhar.”

Em momento algum fez a pergunta típica: porquê eu? – “Perguntei para quê, e não porquê. Percebi que havia um motivo, uma razão. Que havia uma lição a tirar, de certeza que havia. Não tive raiva, não me revoltei. Aceitei, respeitei e decidi lutar, com a certeza de que ia vencer.”
Já refeita do choque, chamou a médica e disse: - “Vamos lá a isto, então. Primeiro ponto: eu não admito ninguém a olhar para mim com pena. Não sou uma coitadinha. Outra coisa: quero poder controlar as visitas. Não quero ninguém ao pé de mim que seja pessimista. Num momento tão decisivo, em que estou tão frágil, não quero que venham para aqui carregar-me negativamente.”
A médica sorriu, contente com a determinação, mas provavelmente sentindo desconsolo. As estimativas para Otília não podiam ser piores: a equipa dava-lhe quatro semanas de vida, mais coisa menos coisa. Não lho disseram porque ela pediu que não dissessem. Mas era esse o seu prazo.
Os tratamentos começaram de imediato. E as análises. E os exames. E todo um batalhão de “torturas” a que o seu corpo foi sujeito. Ao todo, fez 19 mielogramas (punção da medula óssea). Furaram-na 11 vezes para meter o cateter. Mas Otília aguentava tudo quase sem um ai.
- “Tinha uma enorme resistência à dor, que tinha que ver com a minha aceitação. Tenho a certeza! O Prof. Manuel Abecasis dizia que um estado de espírito optimista cria resistência à dor. E a verdade é que eu nunca senti uma dor insuportável. Minto. Um dia, decidi que queria anestesia para me darem um pontinho na zona onde tinha estado o cateter. A médica disse que não era preciso, que eu já tinha aguentado tanta coisa pior, que aquilo era só um pontinho. E eu não aceitei aquilo sem anestesia, estava com medo, estava crispada. Conclusão? A agulha chegou a entortar! A médica só dizia que eu tinha pele de cão. Esta era a prova: a não-aceitação. Se aceitarmos, o nosso corpo, como que se abre. E permite. E não dói." Otília Pires de Lima esteve um ano em tratamentos. Precisava de um dador, mas não havia nenhum compatível e ela não tinha tempo para esperar. Então, tentaram o auto-transplante. Mas as suas células não eram suficientes. Com o cenário mais negro, era ela quem tranquilizava os filhos, os pais, era ela que fazia humor com a situação, como se fosse uma brincadeira. Dizia coisas como:
-“Já viram a minha sorte? Tenho um cancro que não me vai deixar mutilada. Aqui não há nada para cortar. É o sangue. Ou se regenera ou não se regenera. E vai ficar tudo bem.” Para ela, a leucemia não era um agressor. Era um professor. “Aprendi a aceitar a leucemia, e mais: aprendi a amá-la. Ela veio para me ensinar qualquer coisa. Eu meti isto de tal modo na cabeça que, quando me caiu o cabelo, chorei, mas de felicidade. Porque eu acreditava que estava ali para aprender. E que aquela Otília tinha de morrer para nascer uma nova. E personalizei no cabelo, essa pessoa que tinha de morrer. De maneira que comecei a desejar que isso acontecesse. E quando caiu, chorei de alegria.”
O filho, então com 17 anos, foi-se abaixo. No dia em que ela chegou a casa com o lenço na cabeça, deitou-se na cama, chamou-o e disse-lhe: -“Meu querido, eu não quero ter de andar com isto na cabeça aqui dentro de casa. Tenho umas peladas horríveis, isto não é bonito, mas eu quero estar à vontade. E nós somos mais do que cabelo.”
O filho puxou-lhe o lenço, olhou-a, deu-lhe um beijo na cabeça e murmurou: -“Tu és bonita de qualquer maneira, mãe.”
A 12 de Outubro de 2000, os médicos deram-lhe a boa nova: era como se tivesse feito o autotransplante. Estava bem. Tinha alta. Eles não sabiam explicar como, mas Otília venceu.
- “Foi dos dias mais felizes da minha vida.” Neste processo, Otília Pires de Lima descobriu a sua, a nossa, filiação divina.
- “Se somos filhos de Deus, herdámos-lhe o ADN. E se ele é uma força de amor incondicional, nós também temos esse poder. E podemos exercê-lo. Devemos exercê-lo.”
A aprendizagem foi uma aprendizagem de amor. Otília aprendeu a amar-se em primeiro lugar. Só depois aos outros. –“Disseram-nos que é pecado colocarmo-nos em primeiro lugar. Pecado é não nos amarmos. Pecado é não nos perdoarmos. Se não nos amarmos, quem é que o vai fazer? Passamos a vida a ouvir os conselhos dos outros e raramente perdemos tempo a escutar-nos a nós, ao que diz o nosso instinto.”
Foi justamente para espalhar esta lição, que aprendeu da pior maneira, que Otília Pires de Lima escreveu o livro Viver de Amar (Papiro Editora). Porque acredita que o Universo nos dá sinais que nós, por estarmos demasiado ocupados ou por não querermos ver, não vemos. Não é preciso chegar ao estado a que ela chegou para aprender a lição.
O problema é que nós aprendemos mais depressa com o sofrimento do que com a alegria, com a bonança. E este livro era a sua missão! Serve para ajudar as pessoas a amarem-se, a confiarem mais em si mesmas. Ela sentiu que de repente a vida não era nada, mas também teve o privilégio de vencer, e de finalmente sentir a necessidade de ajudar outras pessoas a vencerem também.
Aqui fica esta história de vida, para dar esperança àqueles que desanimam, àqueles que desistem de lutar, àqueles que não acreditam que, “nada acontece por acaso, nem ao acaso”.

NOTA:
Este acto de amor para com os outros, não se ficou apenas na partilha desta experiência com outras pessoas que sofrem de cancro. O livro foi lançado e Otilia ofereceu na íntegra, a receita dos direitos de autor à Associação Portuguesa contra a Leucemia e ao Serviço onde esteve internada.
Quando o livro "Viver de Amar" for publicado no estrangeiro, a receita reverterá, também na íntegra, para a investigação do Genoma Humano, no intuito de ajudar a que mais ninguém precise pagar tão alto preço para nascer de novo.

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